Versão portuguesa de Daniel Lousada [Ler em PDF >>>]
Título Original: “les neurosciences ne feront jamais la classe” [Cap. 5 de La Riposte. Pour en finir avec les miroirs aux alouettes, Paris, Autrement, 2018: pp. 167-179].
Felizmente que a maior parte dos neurocientistas, não pretende criar uma neuropedagogia e, a este título, merecem ser ouvidos. Não é uma questão de negar ou subestimar o interesse dos conhecimentos adquiridos, hoje, neste domínio da investigação. A imagiologia cerebral contribuiu para descobertas estimulantes. Em todo o caso a imagiologia por ressonância magnética [1] não serve para observar todas as situações de aprendizagem, em todos os contextos, nomeadamente na sala de aula, ou durante um passeio pela natureza! O fascínio pela imagiologia deve-se, em grande medida, ao facto de esta mostrar o que até então era inacessível: a nossa actividade cerebral. Na verdade, a imagiologia permite-nos apenas estabelecer correlações – entre a actividade de certas zonas cerebrais e certos comportamentos – e dificilmente permitem inferir a causalidade que leva a prescrições pedagógicas precisas…
É verdade,
contudo, que as neurociências permitem a certos investigadores, graças a protocolos
sofisticados, revelarem fenómenos muitos interessantes. Assim Olivier HOUDÉ,
professor de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Paris-Descartes,
replicou a experiência de Jean PIAGET sobre a comparação, por parte de uma criança,
de duas séries de fichas mais ou menos espaçadas, e demonstrou, com o apoio de
imagens do cérebro, a importância da inibição da resposta imediata por parte do
córtex frontal, para entrar num registo de verificação, de demonstração e de
argumentação.[2] Desta forma, confirmou experimentalmente os trabalhos no âmbito
das didácticas, sobre a necessidade de trabalhar com o aluno, sobre as suas
representações ou convicções espontâneas,[3] como Janusz KORCZAK já antes
defendera, com a sua bela intuição, sobre a importância de pôr travão ao
impulso espontâneo, para colocar em acção o pensamento. Mas, por outro lado, nada
disto nos fornece o interruptor, que permitiria desencadear a inibição da
reacção imediata, por parte do córtex frontal!
É portanto à
pedagogia, que cabe inventar o interruptor, aquele que controla a desaceleração
necessária ao desenvolvimento de um pensamento reflexivo. Compete- lhe a ela fazer
da sala de aula um espaço onde se dá tempo para examinar antes de julgar, a
preocupação de se documentar antes de afirmar, o hábito de demonstrar antes de
impor, a vontade de reflectir antes de agir. Nada, basicamente, que não
tenhamos encontrado nos fundadores seculares, com Ferdinand BUISON, Henri
MARION, James GUILLAUME ou Octave GRÉARD.[4]
Dir-se-á,
contudo, que as neurociências estão na origem de realizações decisivas, que mudaram
a nossa visão da educação, evocando a noção de “plasticidade cerebral”. Este ponto
é, com efeito, essencial. Quando a pedagogia falava do “postulado da educabilidade”,
formulava uma exigência ética, um princípio necessário para não nos deixarmos
tentar pela facilidade da “psicologia do dom”, uma forma de comunicar, explícita
ou implicitamente, ao outro, uma predição negativa, que ele faria o possível por
não nos desmentir: «não podemos instruir se não acreditarmos na inteligência da
criança», dizia já o filósofo ALAIN.[5] Não podemos ensinar sem apostar que todas
as crianças conseguem aprender e crescer. E as neurociências confirmam que esta
aposta não é tão disparatada como nos querem fazer crer.[6] Mas os pedagogos não
ficam por aí: ao necessário voluntarismo educativo, eles opõem um também
necessário limite: a aprendizagem não se decreta; ela supõe a implicação
daquele que aprende, porque, em algum momento, ele precisa começar a fazer o
que não sabe como fazer, para aprender a fazê-lo e que tudo corra bem.[7] A coragem
para começar – a andar, a falar, a escrever, a resolver equações de 2º grau, a
nadar ou a manipular ferramentas, a fazer uma dissertação ou uma declaração de
amor – pelo que nem a pedagogia mais elaborada poderá, jamais, dispensar seja quem
for. Não pode, com efeito, deixar de criar um envolvimento o mais estimulante possível,
de desenvolver uma teia de relações sociais que favoreçam a confiança em si e a
consciência da importância da aprendizagem, para incentivar o outro a crescer… mas
sem nunca forçá-lo nem, por maioria de razões, fazê-lo por ele.[8]
Porque uma
predisposição nunca é – mesmo em medicina – uma predestinação, os neurocientistas
devem, como os pedagogos, ter a preocupação de diferenciar sem catalogar, de se
adaptar a cada um e a cada uma, mas sem desistir de descobrir as perspectivas e
caminhos por conhecer.
Atenção! Não usar a explicação cerebral como
desculpa, aconselha Emmanuel FOURNIER: «os problemas parecem sempre mais
suportáveis se eles se devem a causas que não são da nossa responsabilidade. É
o cérebro que carrega o fardo. Nós utilizamo-lo para nos desculpabilizarmos, ou
seja, para nos demitirmos das nossas responsabilidades.[9]» E a “desculpa
cerebral” pode ocupar, com eficácia, o lugar da “desculpa sociológica”, tantas
vezes utilizada a partir de uma leitura simplista de BOURDIEU: nada mais tentador,
com efeito, que transformar uma dificuldade da criança [de que nós poderemos, pelo
menos em parte, ser responsáveis] num problema neuronal… mesmo que defendamos,
além disso, a maleabilidade do cérebro. Podemos ver claramente, no limite, o
que não é de modo algum uma doutrina pedagógica, que se esforça para tornar as
tensões que a atravessam numa fonte de superação, mas um conjunto de observações
com usos múltiplos e até contraditórios. Quando, por vezes, pretendem fundar
uma pedagogia, na realidade as neurociências apenas alimentam o pragmatismo em
busca de eficácia imediata, muitas vezes cega, quanto aos seus objectivos.
Além disso,
quando querem ser mais precisas, as neurociências fornecem-nos dados sobre
apropriação e memorização de conhecimentos, que podem esclarecer-nos sobre o
assunto, mas são incapazes de nos indicar uma prática. Elas insistem, por
exemplo, no facto de que a aprendizagem é mais eficaz quando o feedback – as observações
e avaliações dos adultos – é positivo, correctivo e rápido; elas defendem que
os conhecimentos e o saber-fazer se inscrevem no cérebro progressivamente e que
as conexões cerebrais não se instalam duradouramente se não forem exercitadas regularmente;
elas sublinham a importância da consolidação dos saberes, para que estes fixem
na memória os seus traços. Tudo isto constitui indicadores preciosos para
delinear uma intervenção pedagógica, mas não permitem decidir sobre que
conteúdos culturais oferecer aos alunos para mobilizá-los, nem mesmo a forma
como lhos vamos apresentar. Tão pouco permite, como ouvimos recorrentemente
aqui e ali, a reabilitação do “aprender de cor”. Não porque entendamos que o
“aprender de cor” seja em si mesmo negativo, porque corresponderiam sempre a métodos
mecânicos de aprendizagem – “aprendi de cor” numerosos poemas e tenho muito
prazer em recitá-los –, mas porque “aprender de cor” não é verdadeiramente possível,
se não se investir numa aprendizagem que pressupõe, a montante, o trabalho sobre
o conhecimento em questão, antecipando o uso a fazer desse conhecimento e uma
reflexão, no decurso da aprendizagem, sobre o caminho para aprender. O que
pressupõe, muito simplesmente, utilizar a memória não como um mecanismo para
gravar e armazenar as informações, mas como um meio, especificamente humano, de
ligar o passado, o presente e o futuro numa intenção ou num projecto.
E é a mesma
prudência que deve guiar-nos, quando aplicamos os conhecimentos das
neurociências à aprendizagem da leitura. Não é este, infelizmente, o caso. Com
efeito, se existem contribuições, particularmente estimulantes, sobre os
fenómenos do cérebro, que são correlativos a certos comportamentos de
leitura,[10] se temos debates sérios e argumentos sólidos sobre a questão[11],
vemos, sobretudo, desenvolver-se uma vulgata oficial, que defende os métodos silábicos,
em nome de argumentos, no mínimo, discutíveis.
É, com
efeito, muito interessante saber, que é a “reciclagem dos neurónios da visão”,
que permitem o acesso à leitura; assim compreende-se melhor, porque uma criança
que constata, que o lado para o qual a pega de uma chávena está virado não modifica
a natureza da chávena, acredita que o b e o d são a mesma letra, tal como o são
o p e o q.[12] Da mesma forma se explica o fenómeno da “escrita em espelho” [quando
a criança escreve de maneira inversa, e os seus textos só são legíveis se
vistos com a ajuda de um espelho]: podemos então relativizar a gravidade desta
disfunção e, benevolente e pacientemente, introduzir ao longo da aprendizagem
as correcções necessárias para ajudar a ultrapassar esta dificuldade.
Compreendemos melhor, igualmente, graças às neurociências, os problemas de certas
crianças: aquelas que sofrem para detectar invariâncias [cadeias de letras idênticas]
em diferentes grafias, aquelas que não percebem que uma letra pode mudar
totalmente o significado de uma palavra, aquelas que são incapazes de ler uma
palavra nova complexa, porque não conseguem dividi-la nos elementos que a compõem.
Tudo isto alerta-nos, efectivamente, para a necessidade de uma aprendizagem silábica
específica, mas nada nos diz sobre o momento em que esta deve ser feita, o tipo
de exercícios a fazer, a natureza dos textos a propor ou o comportamento pedagógico
a adoptar; tudo isto deixa de lado a questão essencial do estatuto da escrita na
sala de aula: como pedir às criançasque investam na leitura-escrita, sem que isso
seja para elas uma oportunidade de comunicação, nem de emancipação, mas
simplesmente um momento de sofrido numa operação escolar de pura normalização? Isto
não se reduz, apenas, a uma questão de minimizar a compreensão, no decurso do processo
de aprendizagem da escrita: colide com o próprio significado do acto de
escrever… Em suma, são totalmente injustificadas as orientações ministeriais
que, seguindo o lóbi de GILLES de ROBIEN e fingindo confiar na neurociência,
passam alegremente do imperativo da vigilância silábica à prescrição dos
“métodos silábicos”.
Destorção
surpreendente [opiniões apresentadas como factos] ampliada massivamente pelos
média. Aqui se lisonjeia a opinião nostálgica pelos bons métodos antigos, de
que antes é que era bom – evidentemente, de quando éramos jovens! –, tudo tendo
por base uma leitura, no mínimo abusiva, das observações das pesquisas
cientificas mais avançadas. Que dizer mais? Esta “reconciliação” política do
melhor da modernidade e do melhor da tradição funciona perfeitamente. E que
importa se as instruções que aconselham estas abordagens,[13] são elas mesmo,
quando as olhamos mais de perto, pouco mais, com leves diferenças, que um resumo
das conclusões de um estudo americano de 1998[14], que sublinha a utilidade de um trabalho específico sobre a correspondência
grafema-fonema [signo escrito/unidade sonora] … que é já prática adoptada pela
quase totalidade das crianças do 1º ciclo! A questão aqui, tal como a vejo, não
é verdadeiramente pedagógica. Ela é simplesmente política: «Descansem pessoas de
bem. Nós descobrimos tanto o problema quanto a solução das dificuldades da
criança, na sua relação com a palavra escrita. Nós tomamos o assunto em nossas mãos!»
Entristece-nos ver os neurocientistas implicados neste género de situações.
Porque na
realidade, se o interesse das neurociências é inegável para a pedagogia, é impossível
considerá-las como uma ferramenta miraculosa, capaz de resolver todos os
problemas educativos. Por um lado, porque as novas descobertas científicas não
anulam, por si sós, as mais antigas: as neurociências não invalidam, por
exemplo, a abordagem de WINNICOTT[15], nem o trabalho clínico do psicólogo ou do
psiquiatra. Por outro lado, porque a compreensão do ser humano não se limita a
uma só destas dimensões: a abordagem cognitiva e afectiva das neurociências não
beliscam, em nada, as investigações sobre as dimensões sociais e culturais do
indivíduo, pelo que não deveriam esquecer as obras linguísticas ou didácticas
propriamente ditas. É verdade, o cérebro pode aparecer como a “cabine de pilotagem”,
onde todos os dados se encontram [biológicos, sociológicos, cognitivos, afectivos,
etc.] e donde partem todas as decisões em matéria de aprendizagem, em todos os
domínios. Mas as decisões do piloto não podem, em caso algum, ser reduzidas a uma
combinação mecânica destes dados, tal como poderia ser feita por um computador.
Com efeito,
o que caracteriza o ser humano, enquanto sujeito, é que ele é portador de projectos
e selecciona as informações que recebe em função destes. A actividade duma criança,
as suas motivações, os seus problemas, as suas perspectivas, não podem ser apreendidas
de um modo puramente objectivo, acumulando informações científicas muito
precisas. Impossível ignorar o que o move, e a que não acedemos a não ser através
do relacionamento com ele. Essa relação inclui, é claro, uma parte emocional, que
as neurociências também podem abordar, mas mais profundamente deve constituir
um convite onde a confiança e a exigência favoreçam a emergência da liberdade e
dos anseios do outro. Por outras palavras, se a neurociência e todas as outras abordagens
científicas do desenvolvimento da criança podem ajudar-nos a criar melhores condições
de aprendizagem, não poderão nunca esclarecer-nos sobre as causas: o que motiva
o sujeito, o que desperta em si o desejo de aprender as fábulas de la Fontaine ou
as equações de 2º grau, o que lhe proporciona a alegria de compreender um poema
de Verlaine ou apreciar um concerto de Mozart, como a satisfação de ajustar um entalhe
e um encaixe ou montar um circuito electrónico, tudo isto não se reduz –
felizmente –, a uma perspectiva científica, condenada a isolar eventos, quando
é necessário relacioná-los, ignorar o sujeito quando é, precisamente,
necessário mobilizá-lo.
Como refere
o filósofo alemão Markus GABRIEL, «o “eu” não é uma chave USB[16]»! Não o
carregamos de conhecimentos, como um ficheiro informático. O “eu” – em matéria
de aprendizagem, como noutros domínios – age apenas para alcançar um objectivo.
Os seus actos têm um sentido para si, mesmo que não o considere totalmente. E é
porque aceitamos o diálogo, e caminhar com o outro nessa busca do sentido, que
contribuímos para sua educação.
Nenhuma
ciência nos liberta, pois, do trabalho educativo, que consiste na procura do
que é bom e verdadeiro, os conhecimentos e os saberes desejáveis para e pela
criança, graças ao nosso exemplo e à nossa criatividade. Temos “ciências da
educação” – e elas devem, evidentemente, desenvolver- se respeitando a pluralidade
de abordagens – não há nem haverá nunca, para desgosto de Stanislas DEHAENE, a
ciência da educação, no singular[17]: a existir, esta não seria mais do que uma
“ciência de adestramento”. O verdadeiro ensino ocorre nas situações em que
possibilitamos o encontro autêntico, em grande parte imprevisível, entre
humanos e com as suas obras.
______________
[1] A ressonância magnética permite visualizar a existência [mas não o conteúdo] duma actividade cerebral, graças à observação da variação de fluxos sanguíneos nas diferentes zonas do cérebro.[2] Numerosas crianças afirmam, espontaneamente,que o número de fichas é mais elevado quando a linha é mais comprida. Outros inibem esta reacção e, antes de dar a resposta, verificam fazendo corresponder cada ficha de uma linha à ficha correspondente da outra. Cf. Olivier HOUDÉ, Apprendre à resister, Paris, Le Pommier, 2014.
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