Maria dos Reis
Paolo Giordano, autor do livro A solidão dos números primos, partindo do conceito de número primo, inerentemente solitário – apenas divisível por si próprio ou por um –, desenvolve uma narrativa que nos fala da solidão, da necessidade de ser aceite, da culpa e da expiação.
Li o livro avidamente, revivendo histórias
que foram passando na minha vida profissional e se encaixavam nos relatos
explanados na obra.
Apropriei-me do título para reflectir sobre
as notícias que invadiram os meios de comunicação, nos últimos dias, e que
dizem o seguinte: “Mulher que afogou o filho autista condenada a 10 anos de prisão”.
“O Tribunal de Mirandela reconheceu que a
arguida chegou a um estado de desgaste emocional e de desespero, agravado pela
pandemia, e por isso condenou Fátima Martinho a uma pena bastante inferior ao limite
da moldura penal”.
O tribunal defendeu que “falhou o Estado, a família e os vizinhos, nesta tragédia”.
A mulher com 53 anos, estaria sujeita a
muito stress enquanto cuidadora do filho portador de “um síndrome de autismo
grave”, o que lhe terá provocado um alegado estado de
"burnout [exaustão emocional].
O acto, por si só arrepiante, leva-nos a pensar sobre o que levou uma mulher, que tratou do seu filho durante 17 longos anos – com uma patologia de autismo severo e epilepsia associada – a uma situação de desespero, que culminou na tragédia já amplamente relatada.
Sim, estamos perante um caso de uma família monoparental
que foi esquecida.
Repito as palavras que o tribunal proferiu,
para justificar a sentença: “ … falhou o Estado, a família e os vizinhos nesta tragédia…” Sim, falhámos
nós, enquanto estado, porque não soubemos, em tempo útil, agir perante factos
de que, tendo conhecimento, fizemos de conta que não vimos.
*
“O conceito de Estado-nação refere-se à forma
de organização dos governos dos Estados Modernos e às organizações sociais que
se estabeleceram em torno deles.”
Pressupõe-se, então, que as organizações
deverão corresponder às necessidades dos cidadãos.
Pelo que também li, e me provocou alguma perplexidade,
este jovem que vivia em Cabanelas-Mirandela, frequentava o agrupamento de
Escolas de Vinhais. Estas localidades distam cerca de 50 Km, o que corresponde
a uma hora de caminho. Um dia de escola pressupõe duas horas de transporte no
mínimo. Todos os dias da semana.
Como será estabelecer contactos com as
famílias?
Sabemos que o trabalho com pais é fundamental.
E, quando diz respeito a crianças e jovens com Necessidades Educativas Especiais,
é simplesmente indispensável. Os planos de intervenção deverão ter em conta
as condições familiares e garantir a continuidade das estratégias delineadas.
Nos encontros com pais e/ou cuidadores, para além do reforço de êxitos conseguidos
[mesmo que simples], é suposto que se detectem sinais de desgaste, cansaço, desalento...
É um trabalho que requer relações de proximidade.
Não é fácil a criação de ambientes para o
atendimento dos casos mais difíceis numa comunidade educativa, mas é possível.
Interessa é ponderar os prós e os contras de cada alternativa.
A situação de pandemia trouxe transtorno a
todos. Para os alunos “ditos normais”, houve a preocupação de responder com
aulas online, de manter algumas cantinas em funcionamento, para garantir refeições
a crianças e jovens que não tinham outra forma de se alimentar. E, para chegar
aos idosos isolados [também eles um sector da população que exige uma atenção
específica], criaram-se equipas itinerantes.
Mas…, o que aconteceu aos alunos com
Necessidades Educativas Especiais? Como foram acompanhadas as suas famílias,
que maioritariamente e tal como os números primos, não fazem parte de
outros conjuntos? Quem tratou de combater o isolamento de cuidadores exaustos e
isolados, a desenvolver estados de “burnout”?
Continuamos todos muito centrados no nosso “mundinho”.
Espero, tão só, que esta mulher, agora
condenada, encontre dentro de uma “prisão” estatal, a paz que nunca teve na sua
vida aprisionada, a partir do momento que foi mãe e enfrentou sozinha uma maternidade tão sofrida.
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